domingo, junho 10, 2012

Sobre o poder e quem chega lá



Uma família conservadora e tradicional: foi isso que sempre fomos, em maior ou menor grau. Nunca recebemos comendas nem favores; habituámo-nos a viver conforme as obrigações do destino, o que resultou numa obra ligeiramente cómica, com tanto de burlesco como de – por vezes – inexplicável. Advirto em várias ocasiões que “uma família conservadora” não era uma delegação do dr. Salazar entre o Porto e o Minho, suportada por regedores que tocavam concertina nas festividades de Verão. O velho Doutor Homem, meu pai, declarara o lente de Coimbra insuportável como pessoa e, depois da guerra, permeável à corrupção e à inabilidade, rodeado do seu séquito de militares e damas de companhia; mais tarde, culpou-o de coisas inadmissíveis e, durante algum tempo, julguei tratar-se de uma obsessão pessoal. Não era. Simplesmente, julgava-se uma espécie de cavalheiro rural inglês, dotado de uma biblioteca e de um casarão entre carvalhos frondosos, incompatível com um primeiro-ministro que se acreditava ungido de capacidades largamente visionárias acerca dos destinos dos seus concidadãos.

Tenho podido explicar às gerações mais recentes da família, em ocasiões nem sempre apropriadas (ou depois do pequeno-almoço de sábado ou em caminhadas pelos pinhais dos arredores), que esta posição sobre o modo como aceitamos ou não aceitamos a presciência de um governo é puramente conservadora. E que um conservador não compreende uma sociedade cercada de regras, impostos, deveres, polícias do espírito e do corpo, operações de vigilância que se confundem com armadilhas aos cidadãos. Esse retrato convém muito às democracias de hoje em dia, que acreditam num povo virtual e escondido em suas casas. Mas é um risco incalculável. Porque uma sociedade sem “zonas de respiração”, sem fendas nas muralhas que a cercam, sem possibilidade de divergir ou de encontrar atalhos, corre o risco de sufocar a todo o momento. A coberto de um mais rigoroso controle fiscal, sanitário e político, o nosso país sofre uma intrusão que, daqui a uns tempos, as pessoas considerarão inadmissível. Ao contrário dos políticos de hoje, que se consideram arquitectos de uma sociedade a caminho da perfeição e civilizadores dos vetustos sertões lusitanos, o velho Doutor Homem, meu pai, acreditava mais na organização espontânea das pessoas, uma resposta admirável do género humano em todas as circunstâncias e diante de todas as dificuldades. Ele não era um mestre de ciência política, mas conhecia o desvario dos homens mal chegavam ao poder – e temia-o com razão.
in Domingo - Correio da Manhã - 10 Junho 2012