O retrato de um cavalheiro discreto
O velho Doutor Homem, meu pai, era advogado e creio que não leu
Montaigne. As suas leituras, a partir de certa altura, confinavam-se ao
essencial de um espírito que tinha feito as suas escolhas e que raramente
precisava de sair delas. Ele morreu, serenamente, em Novembro de 1974,
lamentando que o dr. Palma Carlos não tivesse continuado primeiro-ministro e,
ao mesmo tempo, confirmando que “o coronel do monóculo” era vaidoso demais para
um país tão pequeno. Por várias vezes tivemos de lembrar-lhe que “o coronel do
monóculo” era um general, mas a informação não surtiu efeito, despromovendo-o .
Este género de teimosia era comum na família – a Tia Benedita acreditou até ao
fim da vida (deixou-nos no interessante Verão de 1968) que o dr. Afonso Costa
regressaria para perseguir os padres e roubar os tesouros das igrejas do Minho.
Depois de 1937 também por várias vezes a informámos do falecimento, em França,
do ditador da República. Em vão. Com ela, todo o cabido da Sé de Braga esteve
sempre em perigo, correndo o risco de ser passado à baioneta às mãos do
demagogo.
Refiro Montaigne porque o conjunto de interesses do velho
Doutor Homem, meu pai, era tão variado como o foi a leveza da sua vida. “As
almas mais belas”, dizia o mestre francês, “são as que têm mais variedade e
flexibilidade”. Ao passar os olhos pela sua biblioteca (que herdei aos poucos e
desorganizei com aplicação), revejo um homem que alimentou uma grande
curiosidade pelo mundo – e cuja grande ambição era ler os editoriais do ‘The
Daily Telegraph’ nunca com menos de dois dias de atraso para não ficar
desactualizado em matéria de doutrina. Essa curiosidade fez dele uma espécie de
“homem do Renascimento”. Isso fez dele um ser acessível e bem-humorado, tanto
quanto disponível para as descobertas e desvarios da humanidade. A sua
capacidade de escandalizar-se era mínima; aceitava com tranquilidade os
divórcios da família (que se repetiam com regularidade) e tinha uma fé
ilimitada na nossa competência para cometer erros amáveis que depois seriam
corrigidos a expensas próprias. A esta distância recordo-o como um cavalheiro cordato
que não gostava de fatos assertoados nem de trinados do fado português;
sobrevivendo a Dona Ester, minha mãe, tentou ser um solitário, sem o conseguir.
Perseguiam-no a música, a leitura, a paixão por Inglaterra e o riso que o fazia
desconfiar do país, que ele achava inteiramente ingovernável enquanto não
existissem uma câmara dos Lordes – e um Speaker’s Corner na esquina da Avenida
dos Aliados.
in Domingo - Correio da Manhã - 5 Agosto 2012
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